Um olhar sobre o lugar e as suas memórias

Milton Cardoso
Especial para o Correio

 

Quando estava retornando da Espanha, o coração de Rosemar Tedesco Vaz não cabia de saudades ao rever sua terra natal, Gramadinho, distrito rural de Itapetininga, local em que viveu praticamente a sua vida inteira. Ao chegar a sua casa, chorou. “Para mim, Gramadinho é tudo. Amo. Foi aqui que vivi, lutei, trabalhei muito. A única coisa que sinto falta são dos meus amigos, infelizmente a maioria já partiu”, recorda.

Suas primeiras memórias de infância estão relacionadas a dormir numa pequena dispensa em que estocava açúcar do armazém de secos e molhados do seu avô paterno, João Vaz Nunes. Aos sete anos de idade, mudou-se para Curitiba para tratar de sua saúde, passando a residir com a família do seu tio André.
Na capital paranaense, ingressou na escola. Ela lembra que seu tio a levava até uma confeitaria para escolher o doce de sua preferência, “mas eu não sabia escolher nenhum”, conta. André tinha uma boa condição financeira e desejava que a sobrinha morasse com ele e a família, mas a mãe de Rosemar, Alda Inês, pediu que ela retornasse a Gramadinho para cuidar do irmão mais novo. De volta, boa parte do tempo, o único idioma que ouvia da rígida mãe era o italiano.
Na escola do Gramadinho, Rosemar continuou seus estudos até a antiga 4ª série e foi aluna das professoras Benedita, Nery Arantes, Therezinha Mastrandea e da austera Ednir Perreti. Eram tempos difíceis. Antes de ir à escola, ela e a irmã Silvandira tinham de “baldear” água numa barrica antes de estudar. Depois dessa tarefa diária, caminhavam cerca de meia hora até a escola.

“Na escola não tinha água para beber, muito menos comida. Levávamos uma tigela de virado de feijão com um ovo frito e dividíamos em três pessoas: eu e minhas duas irmãs”, comenta. Ela só conseguiu concluir os antigos cursos ginasial e colegial mais tarde. “Minha irmã tinha as apostilas do Instituto Universal Brasileiro, assim eu finalizei meus estudos no supletivo. Ia todo semestre até a escola Peixoto Gomide realizar as provas obrigatórias”, lembra.

Ela conta que, em virtude de sua dedicação, o professor Marinho lhe ofereceu um ano de cursinho preparatório. “Eu fui aprovada no vestibular. Estava decidida a ir embora, mas meu avô foi até à beira da pista e pediu para eu não ir, dizendo que deixaria tudo o que tinha para que eu não partisse. Eu era muito apegada a ele. Meus avós cuidavam mais de mim do que meus pais. Mesmo sofrendo com a oportunidade perdida, decidi ficar”, diz emocionada com a recordação.

 

Casamento Arranjado

João Vaz era casado com Francisca do Carmo, conhecida como Chica Vaz. “Minha avó era uma pessoa de bom coração. Meu bisavô a chamava de Chicutinha. Ela sempre me contava que trabalhava na roça. Certo dia, o pai dela falou para a esposa, a madrasta de minha vó, que Chica não iria mais para a roça e que, a partir daquele momento, aprenderia a tomar conta da casa. Ela tinha 15 anos. Sem entender o motivo, sua madrasta a ensinou todos os afazeres domésticos”, explica Rosemar.

O pai de Chicutinha a levou de cavalo até Itapetininga para marcar o casamento. Assustada, ela perguntou ‘com quem iria se casar?’, porém nada foi revelado. Na Campos Salles, ele comprou um tecido de algodão para fazer o traje de noiva. Com a ajuda da madrasta, ambas confeccionaram o vestido sem saber quem era o pretendente.

Com detalhes, Rosemar lembra a história que sua avó Chica Vaz lhe contava. “Ela perguntou ao pai com quem se casaria e ponderou: ‘Não é por mal que lhe pergunto, mas eu preciso saber’. O pai então lhe falou que era com o filho do Nhô Salvador. ‘Meu pai, com ele eu não quero!’. O pai então questionou: ‘Por que você não quer? Agora não tem mais arranjo, já tá tudo marcado’. E ela explicou que ele era um moço bonito, andava bem arrumado, tinha cavalo bem cuidado, mas era filho de Nhô Salvador, o homem para o qual eles trabalhavam de camarada. Senhor Salvador era bem de vida, e eles não tinham nada. Eles eram carpidores de terra, ganhavam hoje para comer amanhã”, explica.

Rosemar conta que sua avó disse ao pai: “Nem roupa boa eu tenho, não tenho nada para levar, meu pai! Como vai ser isso?”. E reforçou: “Eu só tenho a enxada como dote!”. O pai enfim a tranquilizou: “Você não tenha vergonha, minha filha, porque foi o Nhô Salvador que veio pedir você em casamento”.

Inicialmente, o noivo também desconhecia com quem se casaria. Os avós de Rosemar lhe contavam que Nhô Salvador disse ao filho que ele já havia ajudado muito no sítio e que estava na hora de se casar. “Ele não perguntou ao pai com quem se casaria ainda que o pai lhe instigasse: ‘viu, João, você não quer saber com quem vai casar?’. A essa interrogação, ele simplesmente respondeu: ‘Se for do seu gosto e de minha mãe, é do meu gosto também!”

No dia do casamento, Chicutinha foi a cavalo até a cidade, porém, ao atravessar o rio, o animal caiu com a noiva na água. Chica Vaz se casou com o vestido todo molhado. Diante das circunstâncias, Rosemar diz que a avó sentia “muita vergonha do marido” e que essa situação durou um bom tempo. “Ela me contava que carpia terreno para plantação do lado oposto ao do meu avô. Por muito tempo não se sentava à mesa durante as refeições”, lembra.

Enquanto ele cuidava da plantação, a esposa cuidava do armazém. Mais tarde, os avós compraram uma jardineira. Porém, seu avô não gostou do veículo, “tinha queixo duro”, ele gostava de cavalo e vendeu para o Chico Louco, que transportou durante muitos anos o pessoal de Gramadinho até o centro de Itapetininga. Com a morte da Dona Chica, o avô nunca mais teve um relacionamento. “Minha Chica está viva no meu coração!”, dizia.

Com muita fé

Foi no decorrer das setenta e oito primaveras que a vida de Rosemar “embrulhou tudo”, como disse Guimarães Rosa. Católica, sempre foi muito envolvida com a igreja de Gramadinho desde o batismo, em 7 de outubro de 1956, até 1996, quando se desligou por divergências. “Fui catequista e ministra de Eucaristia por muitos anos. Eu era a última a sair, fechava a igreja e voltava para casa, altas horas da noite. O caminho era escuro. Andava armada, mas nunca tive problemas, só encontrava pelo caminho tatus ou cachorros do mato”, diz.

A rigorosa vida é assim, como escreveu Guimarães, “esquenta e esfria, aperta e afrouxa, sossega e depois desinquieta”. Na lida diária do sítio, ela sempre acordava de madrugada e passava o dia inteiro plantando, colhendo e cuidando dos animais do sítio. Aprendeu a dirigir trator, “sempre lutando” com orgulho, pois a vida, como disse o poeta mineiro, “quer da gente é coragem”.

Há trinta anos aproximadamente, ela teve a ideia de registrar em um caderno as memórias de Gramadinho contadas por seus antepassados, pois percebia que a história herdada pelos jovens do distrito estava sendo perdida. Para essa tarefa, teve a colaboração de outra moradora da região, Eliza Lopes. Parte dessas histórias foram então compiladas por Luiz Gonzaga, que era amigo do seu pai. “Ele veio fazer uma visita ao meu pai, ficou interessado e me ajudou a finalizar o livro”.

Com seu espírito de liderança, sempre lutou pelas melhorias no distrito, fosse pela questão do esgoto ou pelas obras de melhorias no cemitério local. Na medida do possível, as reivindicações comunitárias trouxeram essas e outras tantas benfeitorias públicas. Candidata a vereadora apenas uma única vez, apesar de bem votada, segundo ela, não conseguiu o coeficiente necessário para a eleição.

No seu olhar atento sobre a Gramadinho que tanto ama, lamenta o silêncio do local. “Está tudo muito pacato. Que saudades das festas de outrora. Como se faziam festas por aqui!”, constata.

Talvez isso ocorra porque a vida contemporânea esteja nos empobrecendo. As festas comunitárias que uniam uma “comunidade de ressonância”, nas palavras do filósofo Byung-Chul Han, vem perdendo espaço avassalador para as escolhas individuais que nos distanciam de qualquer vínculo com os outros nessa época da hipercomunicação digital que produz uma “comunicação sem comunidade”.

 

Registro histórico 

Foto - Acervo
Foto – Acervo

O nome “Jardineira” (ônibus com as laterais abertas) se “dá por causa das operárias dos anos 30, da região da Mooca e Ipiranga, (…) que transportavam (…) as operárias, que usavam chapéus floridos. Por este formato de carroceria, toda aberta na lateral e pelas flores dos chapéus, taxistas, artesãos, padeiros e até os próprios motoristas falavam que os ônibus pareciam Jardineiras, e o nome pegou”, explica Milton Jung. A jardineira que transportava passageiros de Gramadinho a Itapetininga era conduzida por Francisco Antunes, o “Chico Loco” (sentado). Na imagem uma viagem a igreja de Pirapora de Bom Jesus devido a uma promessa. Essa viagem de aproximadamente 160 quilômetros durou nessa época dois dias, segundo Dona Rosemar.

 

 

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