Daniel Paulo de Souza
Para a tradição litúrgica católica, o chamado “Tempo do Advento” representa não só o início de um novo ano na liturgia romana, mas também o período de preparação para o nascimento de Cristo, o Filho de Deus, cuja humilde encarnação deve produzir nos seres humanos uma efetiva transformação moral e espiritual. É preciso compreender, segundo Santo Agostinho, que na simples manjedoura da natividade a soberania de Deus reside na “minúscula forma de servo” de sorte que, naquele momento, “nem Sua grandeza foi diminuída por Sua pequenez, nem Sua pequenez foi superada por Sua grandeza”.
Em síntese, ali o amor divino pela humanidade superou os limites da bondade, pois, ainda de acordo com Santo Agostinho, o criador dignou-se “a formar um consórcio com a nossa natureza” à medida que também se fez homem. Cabe aos fiéis devotos, com isso, nas semanas que antecedem o Natal, refletir os propósitos da vida e da fé e preparar os corações para a chegada do Menino Jesus, que consuma a aliança definitiva de Deus com o mundo. Esse é, para a tradição cristã, o real sentido das festividades natalinas e o mistério que, nas palavras de São Tomás de Aquino, “excede a razão humana”, uma vez que nada há de mais admirável do que o Cristo, “verdadeiro Deus”, fazer-se “verdadeiro homem”.
O significado dessa simbologia religiosa é o destaque da obra “Mistério de Natal” (1992), do escritor norueguês Jostein Gaarder. Conhecido pelas obras “O mundo de Sofia”, “O Dia do Curinga” e “A garota das laranjas”, esse autor habitualmente constrói histórias filosóficas protagonizadas por crianças que, aguçadas pela curiosidade, envolvem-se em tramas cujo fim é o crescimento interior proporcionado pela busca do conhecimento. No enredo de “Mistério de Natal”, por exemplo, o jovem Joaquim aprende sobre personagens e lugares históricos e sobre diferentes lições relacionadas ao nascimento de Jesus.
No dia trinta de novembro, Joaquim e seu pai foram à cidade na “última hora” à procura de um calendário do Advento. Como não o encontraram nos quiosques, entraram numa pequena livraria e examinaram, sem entusiasmo, alguns que viram no balcão. O menino então avista, na parede de livros, um de cores desbotadas, aparentemente da idade do pai, no qual se lia a inscrição “Calendário Mágico do Advento”, vendido a setenta e cinco centavos. Na frente, havia a imagem de São José e da Virgem Maria inclinados sobre a manjedoura e cercados dos reis magos, de pastores, de ovelhas e de um anjo que vinha do céu tocando uma trompa. Tal como os calendários de antigamente, aquele trazia vinte e quatro janelas numeradas que deveriam ser abertas, dia após dia, até a véspera de Natal.
Alertados de que aquele objeto fora ali deixado por Johannes, o vendedor de flores, eles compraram-no e levaram-no para casa. Na manhã de primeiro de dezembro, ao abrir a primeira janela, Joaquim percebeu um segredo empolgante: da primeira imagem oculta saltou um pequeno bilhete bem dobrado e “escrito de ambos os lados”. Nele se contava a história de Elisabet Hansen, uma menina que certa vez viu, à mesma época das festas de final de ano, um cordeiro de pelúcia saltar da pilha de ursinhos numa loja de brinquedos e fugir para longe do “ruído das máquinas registradoras”. Depois de correr pelas ruas atrás do ligeiro bichinho, que chacoalhava um sininho no pescoço, ela saiu da cidade em direção à floresta sem alcançá-lo, mas mantendo-o no campo de visão.
Essa aventura de Elisabet, que perseguia um cordeiro que ganhara vida no armazém comercial, intrigou tanto o menino que inicialmente ele guardou tal segredo dos pais e ansiou pelo dia seguinte, quando enfim abriria uma nova janela. Em dois de dezembro, ao ler mais um daqueles papéis meticulosamente dobrados, descobriu que, ao redor da menina, o clima mudou, o inverno deu lugar ao verão e o tempo andou para trás. “Decidida a ir atrás do cordeiro até o fim do mundo, se necessário”, ela conhece o anjo Efiriel, que lhe esclarece o motivo da incomum disposição do bichinho: ele “vai para Belém”, diz, pois “foi lá que Jesus nasceu”. Ambos se juntaram a essa campanha rumo à cidade da natividade e ao ano zero a fim de presenciarem um dos momentos mais marcantes da História.
Começava, dessa forma, uma peregrinação mágica que retrocedia dois mil anos, da Noruega a Belém, para dar “boas-vindas ao Menino Jesus”. Diante da incredulidade de Elisabet com relação a “atrasar o tempo”, Efiriel explicou que “nada é impossível para Deus”. Na perspectiva de Joaquim, mais do que imaginação, esse relato continha pinceladas de veracidade, já que os peregrinos atravessavam acontecimentos históricos e paisagens descritos nos livros e mapas. Além do mais, “os pensamentos não têm fronteiras” e eram, dia a dia, ocupados pelo espírito do Advento e pela ideia de que “a glória celestial é imensa e expande-se com facilidade” pela Terra.
Aos poucos, o grupo aumentava à proporção que novos personagens apareciam: os pastores Josué e Jacob, novas ovelhas, os reis magos Gaspar, Baltasar e Melchior, o anjo-criança Umuriel, Quirino, governador da Síria, o imperador Augusto e outros. De 1905, na fronteira com a Suécia, a 1814, já em Gotemburgo, o menino aprendia, por exemplo, a respeito da geografia escandinava, da cidade de Kungälv e da figura do rei Sigurd Jorsalfar, que peregrinou à Terra Santa. Soube que 1648 foi o último ano do reinado de Christian IV, fundador de Kristiansand e de Kongsberg, que nos arredores de 1351 a população de Hannover, na Alemanha, ainda sentia os efeitos da terrível Peste Negra e que, em 380, o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano.
O filósofo Friedrich Hegel afirma que a arte nos oferece “a experiência da vida real” e nos transporta a “situações que a nossa existência pessoal não nos proporciona nem proporcionará jamais”. Na participação ao que ocorre com outras pessoas, “ficamos mais aptos a sentir profundamente o que se passa em nós próprios” e a acordar em “nós o sentimento e a consciência de algo de mais elevado”. A arte coloca ao alcance da intuição o que habita o espírito humano ou a verdade ali depositada.
De modo geral, para o pensador alemão, “a arte cultiva o humano no homem” e o coloca diante de si mesmo. É justamente essa experiência que se vê no romance de Jostein Gaarder em via dupla, de Elisabet para Joaquim e da ficção para os leitores. Paralelamente, o que a menina aprende com Efiriel e com os sábios na viagem a Belém repercute na sensibilidade do menino da mesma forma que as leituras e as investigações do menino afetam a conduta do leitor e o fazem meditar acerca de certas lições do Advento, como as premissas de que “a paz é a mensagem de Natal”, de que “o Reino de Deus está sempre aberto, mesmo para aqueles que viajam sem bilhete” e de que o entendimento do certo e do errado não tem validade se isso “não contribui para ajudar uma pessoa em aflição”.
Soren Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês, alerta para a ideia de que, “se o homem não possuísse consciência eterna”, se sob as coisas “se escondesse infinito vazio” sem algo para preencher e se “um vínculo sagrado não cingisse a humanidade”, a vida seria vã e desoladora. No entanto, ele diz, Deus é absoluto, está acima da compreensão mundana, e “a relação com Ele é superior a qualquer outra”. Nesse sentido, a tentativa de Gaarder de aproximar quem lê ao mistério de Natal e à verdade transcendental que o acompanha faz despertar no sujeito tanto essa consciência do absoluto quanto, de certo modo, a necessidade de conhecê-lo, afinal, de acordo com o narrador, quanto mais sabemos, melhor vemos as coisas e, consequentemente, “melhor as compreendemos”.
Uma terceira jornada, a de uma certa Elisabet Tebasile, desaparecida em 1948 e fotografada em 1961, em Roma, soma-se a essa peregrinação fantástica para lançar mais luz à história do calendário. No desenvolvimento da trama, ela mostra que o Natal de Belém não é um fato do passado, mas um episódio que sempre se atualiza nos lares que se preparam, de coração aberto, para fazer o Menino Jesus nascer novamente. São Tomás de Aquino diz que o “Verbo de Deus” encarnado é dotado de quatro utilidades: “pureza, humildade, amabilidade e mansidão”. É puro, porque é sem pecado; é humilde, porque está despojado num estábulo; é amável, porque é formoso entre os homens; é manso, porque é “benigno e compassivo”, paciente e misericordioso, pronto para vencer a soberba e o mal.
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