Milton Cardoso
Especial para o Correio de Itapetininga
Muitas contribuições na arte moderna brasileira ainda necessitam ser estudadas ou aprofundadas, como é o caso do artista itapetiningano “quase” esquecido Antônio Gonçalves Gomide e de sua vasta produção. Dotado de um “jeito encorujado”, como definiu Mário de Andrade, Antônio era descendente de uma família com características aristocráticas. Homem culto, refinado, foi muito influenciado pela cultura europeia, pois viveu na Suíça e na França por cerca de 16 anos.
Terceiro filho de Gabriel e de Cherubina Gomide, descendentes de família aristocrática, Antônio nasceu em Itapetininga no dia 3 de agosto de 1895. Seu avô paterno foi um conselheiro do Império que frequentou a corte imperial.
Nesse ambiente familiar impregnado de aristocratismo, iniciou seus primeiros estudos na cidade. Seus pais possuíam uma educação refinada e uma vasta cultura literária. Sua mãe tocava piano e o pai violino, instrumento que também aprendeu a tocar.
Era comum a família viajar até São Paulo para assistir às óperas. Seu pai, juiz de direito, viveu na cidade por aproximadamente 18 anos e foi um dos cocriadores do clube de tiro ao alvo Concórdia e um dos idealizadores do Club Ideal, associação musical que realizava concertos na residência de seus sócios.
Quando Gabriel foi promovido a desembargador, a família Gomide voltou a residir em São Paulo. Antônio, então, terminou seus estudos na Escola Normal da capital. Formado, mudou-se com os familiares para Genebra. Apaixonado por desenho, iniciou ali sua formação artística na Escola de Belas Artes, assim como sua irmã Regina, outra importante artista. Teve aulas com Gillard, mas foi fortemente influenciado pelo artista simbolista Ferdinand Hodler. Interessou-se pelas aulas com modelo vivo, logo passou a frequentar as de anatomia, “porque sempre considerou a anatomia como o tema que oferece aos artistas as mais puras emotividades”, declarou a revista Resenha Artística.
Antônio repetia seus estudos incessantemente à procura de um aprimoramento da linguagem visual – era rigoroso no exercício de sua profissão. Hábil no traçado, a linha era seu elemento preferido, sabendo “criá-las puras, simples, sem requintes nem desperdícios analíticos, cheias de substância, graves. Gomide a inventa e mostra magnificamente. A linha dele é cheia e completa”, analisou Mário de Andrade em 1927.
Na Belas Artes, conheceu John Graz, que futuramente se casaria com Regina. Os três são considerados os responsáveis pela art déco (abreviação da palavra francesa arts décoratifs) no Brasil.
Com a morte de seu pai, a situação financeira da família começou a mudar. Em agosto de 1918, retornou ao Brasil e ficou por aqui em torno de um ano, passando desapercebido pelo ambiente artístico que já começava a respirar os ares “modernistas” a partir da exposição de Anita Malfatti, considerada o “estopim” da Semana de Arte Moderna. Porém, não há informações de que tenha convivido com os modernistas.
Em Paris, entre 1921 e 1926, evoluiu artisticamente, recebendo influências da art déco e do cubismo. Em Toulouse, aprendeu a técnica do afresco ao tornar-se assistente de Marcel Lenoir. De temperamento inquieto e boêmio, em 1924 montou seu ateliê na capital francesa e foi vizinho de Brecheret, do qual se tornou um grande amigo. Também conviveu com Anita Malfatti nessa mesma época.
Sua vida parisiense não foi fácil. Sua fonte de renda eram os desenhos que vendia para a estamparia de tecidos ou para costureiros e casas de modas, os pequenos serviços e as aquarelas que vendia nas ruas com a técnica que mais utilizou na carreira.
Sua primeira exposição individual aconteceu somente em 15 de janeiro de 1927, em São Paulo. O sucesso dessa exposição abriu portas para a cena artística, despertando interesse da elite cultural e dos intelectuais da época. Mudou-se definitivamente ao Brasil apenas em 1929.
Participou, com suas obras, da exposição Brazilian Art (Nova York) em 1930, mostra que reunia pela primeira vez trabalhos representativos de artistas brasileiros modernistas no exterior. Costumava realizar experiências isoladas do que produzia, sobretudo na linha decorativa, área em que se concentrava boa parte de sua produção.
Participou da Revolução Constitucionalista, retratando, com seus trabalhos, a visão contrária à violência ou a ligações políticas que possuía dos acontecimentos. “As aquarelas e gravuras resultantes de sua participação na Revolução registram alto teor de inventiva pessoal”, analisa a historiadora Elvira Vernaschi.
Durante sua carreira, atuou como professor e trabalhou em 1952 na Cia Vera Cruz, executando cenários. No final da década de 1940, o foco de sua pintura são as mulheres afrodescendentes e as cenas de danças populares, desenvolvendo uma poética que procurou “captar o caráter da religiosidade afro do nosso povo”, explica Elvira.
Durante um bom período, manteve-se afastado do ambiente artístico. Sua última exposição aconteceu em 1964 na Casa do Artista Plástico, obtendo enorme sucesso. Então, mudou-se para Ubatuba para dedicar-se ao seu esporte preferido, a natação. Com a perda gradativa da visão nos últimos anos de sua vida, Antônio Gomide manifestou-se artisticamente através da escultura. Faleceu em 1967, com 72 anos de idade.
Em 1968, o Museu de Arte Contemporânea fez uma retrospectiva de seu trabalho organizada por Walter Zanini. No decorrer dos anos, outras mostras individuais e coletivas buscaram resgatar a importância da sua arte, como a ocorrida em 2017, também organizada pelo MAC, que prestou uma nova homenagem à sua contribuição aos “avanços da estética modernista e da arte brasileira”.
Gomide dedicou meio século de sua vida à busca incessante de um ideal estético, revelando uma poética única que merece ser mais difundida.
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