No final da década de 70, muitos movimentos ligados à saúde denunciaram abusos cometidos em instituições psiquiátricas, além da precarização das condições de trabalho, reflexo do caráter autoritário do governo no interior de tais instituições. A partir daí, surgiram movimentos de trabalhadores de saúde mental, que colocaram em evidência a necessidade de uma reforma psiquiátrica no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que contou com a participação popular, inclusive de familiares de pacientes, e o Movimento Sanitário foram dois dos maiores responsáveis por essa iniciativa.
Em 18 de maio de 1987 foi realizado um encontro de grupos favoráveis a políticas antimanicomiais. Nesse encontro, surgiu a proposta de reformar o sistema psiquiátrico brasileiro. Pela relevância daquele encontro, a data de 18 de maio tornou-se o dia de Luta Antimanicomial.
Para falar sobre o assunto, o Jornal Correio de Itapetininga entrevistou Erico Pontes, psicólogo Especialista em Psicologia e Saúde Mental
Jornal Correio de Itapetininga – A Luta Antimanicomial trouxe avanços para o tratamento psiquiátrico no Brasil ?
Erico Pontes – Termos muito a comemorar, por conta de que realmente a luta antimanicomial no Brasil alcançou várias conquistas. A luta antimanicomial do Brasil como processo de luta pela reforma psiquiátrica, no Brasil ela bebe muito da reforma psiquiátrica italiana. O modelo de Franco Basaglia , que é o responsável pela reforma psiquiátrica na Itália, ele veio até o Brasil.
Em 1987 teve a primeira conferência nacional de saúde mental e essa data marca a luta antimanicomial. Inicialmente, a luta antimanicomial era pra uma melhoria no tratamento ocorrido nos hospitais psiquiátricos do Brasil. Como outros hospitais do mundo, existiam várias violações de direitos humanos dentro dos hospitais psiquiátricos brasileiros. Inclusive, tem um livro bem importante que fala sobre isso, que é o Holocausto Brasileiro.
Em 2001 após muita discussão foi aprovado o projeto de lei 10.216 de 2001, de autoria do deputado Paulo Delgado (PT). Essa lei organiza principalmente o direito das pessoas portadoras do transtorno mental no Brasil. Ela regulamenta, por exemplo, as internações, as formas que podem ser as internações e define as internações e orienta quais as possibilidades, as formas de internação. Se você quiser fazer uma internação involuntária, por exemplo, ou uma compulsória, você tem que seguir essa lei pra fazer essa internação. E é muito importante ainda hoje pra regulamentar as internações. Ela continua importante pra realmente assegurar o direito das pessoas portadoras de transtorno mental.
Jornal Correio de Itapetininga – Quais foram as mudanças que a Luta Antimanicomial trouxe para a nossa região ?
Erico Pontes – No bojo dessa luta, em termos de região, o movimento da frente luta antimanicomial de Sorocaba (FLAMAS) teve um papel bem importante principalmente, um movimento ainda existente lá que foi feito a partir de um documento do professor Marcos Garcia , professor do meu mestrado
Em 2012 tivemos uma reportagem do programa Conexão Repórter do SBT, do jornalista Roberto Cabrini, que mostrou nacionalmente o que acontecia aqui na região de Sorocaba, que era o maior polo manicomial do Brasil. A região de Sorocaba tinha um hospital psiquiátrico aqui, o Vera Cruz, o Teixeira Lima, o Vale das Hortências, o Vale das Hortências, o Jardim das Acácias, na região de Sorocaba, o maior polo manicomial do Brasil.
O movimento antimanicomial de Sorocaba, junto com o UFSCAR, fizeram a denúncia que mobilizou também a reportagem.
E aí foi após isso, essa mobilização nacional, inclusive, do horror que acontecia lá dentro, foi feito um termo de ajustamento de conduta do Ministério Público Federal. Foi feito um termo de ajustamento de conduta para o fechamento dos hospitais psiquiátricos da região do Sorocaba. Eu acompanhei isso na época como Coordenador de Saúde Mental do município.
Jornal Correio de Itapetininga – E em Itapetininga, quais foram as consequências desse processo ?
Erico Pontes – A partir desse termo de justamente de conduta, em 2012, foram feitas várias reuniões, inclusive com a região toda, para o fechamento dos hospitais. Com o fechamento dos hospitais psiquiátricos de Sorocaba, cada município dessa micro região de Sorocaba deveria criar um plano.
Isso foi muito legal, é uma história que eu me orgulho também muito de ter participado.
Cada município deveria se preparar e criar serviços e adequar outros serviços que já existiam, por exemplo CAPS, para acolhimento destas pessoas. Itapetininga na época tinha 30 pessoas. Então, Itapetininga iria receber 30 pessoas que estavam internadas lá nos hospitais da região do Sorocaba por 10, 20, 30 anos.
Tem uma pessoa que na época a gente tirou de lá e acolheu em Itapetininga, que viveu a vida inteira dentro de uma instituição psiquiátrica. Era uma figura muito conhecida na cidade que todo mundo achou que tinha morrido. Ele estava dentro do Hospital Psiquiátrico de Sorocaba e a gente tirou ele de lá. Trinta pessoas saíram dos hospitais psiquiátricos da região do Sorocaba, nós alugamos 3 casas, cada casa acolhia 10 pessoas. As residências terapêuticas fazem parte da rede de saúde mental e recebem recursos do Ministério da Saúde para manutenção. Atualmente ainda dão moradia, um lar digno para essas pessoas que ficaram a vida inteira internadas. Uma é só para mulheres e duas que são dos homens. E a gente foi conhecer um por um dessas 30 pessoas lá no hospital em Sorocaba, teve acompanhamento do DRS-16 aqui de Sorocaba, de uma equipe de desinstitucionalização que também acompanhou todo o processo, porque tinha que rever a medicação de todo mundo.
E essa é mais uma das conquistas que veio lá da luta que iniciou em 1987 e foi desencadear no fechamento dos hospitais e na saída dessas pessoas.
Jornal Correio de Itapetininga – É uma grande mudança o fechamento dos Hospitais Psiquiátricos e a nova forma de atendimento psiquiátrico. Qual é o foco hoje da Luta Antimanicomial ?
Erico Pontes – Mas a luta antimanicomial não é só isso. Foram fechados os hospitais, mas a luta antimanicomial continua. A luta antimanicomial atualmente continua como a luta realmente contra o preconceito com as pessoas que tem algum transtorno mental. A luta que a gente tem que ter hoje é por um atendimento digno de pessoas que tem algum comprometimento no desenvolvimento, como crianças e até adultos que tem TDAH ou autismo. E não é só a luta antimanicomial, mas a luta por uma saúde mental mais digna, mais adequada, mais preparada. Itapetininga cresceu muito, o crescimento da cidade e da população de Itapetininga é muito grande. Isso acarreta várias questões, principalmente de uma desigualdade social. O que acontece é que numa cidade quando ela vai crescendo, essa desigualdade social é totalmente proporcional às pessoas que sofrem transtorno mental. Então, aumenta a população de rua, aumenta os transtornos mentais. E isso também faz parte da luta antimanicomial, porque as pessoas que sofrem de transtorno mental, elas têm que ser acolhidas no cotidiano da cidade. E se não existe um local adequado para essas pessoas, esses locais precisam ser criados. Precisa por exemplo de um centro de acolhimento.
Na época, a gente conseguiu inaugurar um CAPS infantil. A luta antimanicomial não só é tirar as pessoas que estão sofrendo no hospital, mas dar condições, não só adequadas, mas condições de reparação dos danos causados. Por exemplo, as pessoas que saíram dos hospitais hoje estão nas casas, que chamam de residências terapêuticas. Elas recebem do governo um recurso, que chama “De volta para casa”, elas tem um benefício do BPC, elas tem uma casa que a Prefeitura aluga, tem uma equipe técnica cuidando deles lá.
É um trabalho que é feito não só para tirá-los lá, mas para dar dignidade, conforto e reparação social. Então a gente precisa fazer isso constantemente, a gente precisa rever, olhar e ver se realmente a gente está dando oportunidade para que essas pessoas não se institucionalizem novamente.
Porque não são só as grades dos hospitais de saúde psiquiátrica, são as grades do preconceito, da discriminação, da falta de acesso aos serviços, tudo isso faz parte da luta antimanicomial. Os avanços foram conquistados, a gente conseguiu, mas a gente tem muito ainda para caminhar e a luta não é uma luta pontual, é uma luta de caminhada, é uma luta viva… é vontade, vontade pessoal, vontade política, vontade de uma sociedade mais justa, é uma luta radical, tirar as pessoas do hospital psiquiátrico, radical no sentido bom da palavra, porque mostra que todas as pessoas são capazes de viver em liberdade. A liberdade é a premissa principal da luta antimanicomial, todas as pessoas podem viver em liberdade, elas devem viver em liberdade, mas a sociedade tem que estar preparada. Não só preparada em termos legais, jurídicos, preparada de coração, com um coração preparado para receber essas pessoas. A luta antimanicomial teve os avanços, inclusive em Itapetininga, e eu acompanhei de perto, estava presente. Tive oportunidade de viver isso, na época como coordenador, mas a luta ainda continua, eu como psicólogo do SUS, como cidadão, como militante da luta antimanicomial, ainda mantenho a luta viva e cada ano que vem a gente tem que sentar e olhar as conquistas e olhar os desafios que a gente tem que superar.
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